COVID 19, Liberdade

A pandemia e o ativismo judicial

No dia 21 de junho, um domingo tranquilo, fomos dormir perplexo com a decisão liminar do juiz plantonista Claudiney Alves de Melo que suspendeu o decreto 1.187/2020 do prefeito Iris Rezende (MDB), que havia autorizado a abertura de estabelecimentos comerciais, a partir da segunda-feira dia 22 de junho, cujo funcionamento estava suspenso por causa do coronavírus.

Tal situação demonstra que estamos em plena era da judicialização das decisões. A “justiça” se ver no dever de interferir com propósito de “defender a sociedade” dela mesmo e daqueles que aos olhos de quem julga não estão “coerentes” e “não entendem” a “real situação” de pandemia que vive o país.

No Supremo Tribunal Federal esta situação se apresenta ainda com mais força pois: o STF investiga, denuncia e julga. Tudo ao mesmo tempo. Lembrando que o Rui Barbosa disse que a pior ditadura é a do Poder Judiciário, pois contra ela não há a quem recorrer.

Entretanto, uma interpretação apressada dessa assertiva pode nos dar a impressão de que o poder judiciário é capaz per se de impor uma ditadura, algo que não resiste a uma análise mais acurada pois o mesmo precisa da conivência de pelo menos mais 1 dos poderes da República (executivo ou legislativo).

Sobre esta situação, para o ministro Fux, há a necessidade de o Judiciário oferecer “segurança jurídica” para a retomada do país após a pandemia. “O que o Judiciário pode oferecer de melhor para o público interno e investidores no momento pós-pandemia é segurança jurídica”, disse. E o mesmo entende que a “segurança jurídica legal é evitar uma orgia legislativa, uma série de leis editadas a todo momento”.

Por exemplo, com a pandemia do coronavírus, a decisão proferida pelos membros do STF de que o presidente da república não tem poder para determinar o combate à pandemia em todo território nacional foi simplesmente uma afronta, dando poderes aos governadores e aos prefeitos para que cada um realize aquilo que achar melhor no seu território.

Outro ponto que o STF vem aumentando o poder da esfera judicial principalmente no sentido de definir o mesmo como um poder regulador/ censurador. Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 consagrou de forma clara a liberdade de expressão como um direito fundamental. Logo no início, ao tratar das garantias fundamentais, estabelece: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

E que o mesmo ocorreu até 2003 quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que a liberdade de expressão não é tão elástica como os constituintes de 1988 pareciam desejar. Na ocasião, em 2003, a maioria dos ministros concluiu que era válida condenação por racismo do editor de livros Siegfried Ellwanger, do Rio Grande do Sul. Esse entendimento ganhou ainda mais relevo em 2019, quando o STF decidiu que homofobia é uma forma contemporânea de racismo. O relator do caso foi o decano do Tribunal, Celso de Mello, que citou em seu voto várias vezes a decisão de 2003 sobre o racismo contra judeus. E em 10 de junho de 2020, o STF começou a julgar a constitucionalidade do inquérito das fake news. E, mais uma vez, deu sinais de que não considera ser absoluto o direito à liberdade de manifestação de pensamento.

O relator da ação que contesta a legalidade do inquérito das fake news, Edson Fachin, expressou o seu voto e disse: “Atentar contra um dos Poderes, incitando a seu fechamento, incitando à morte, incitando à prisão de seus membros, incitando à desobediência a seus atos, ao vazamento de informações sigilosas, não são manifestações protegidas pela liberdade de expressão na Constituição da República Federativa do Brasil. Não há direito no abuso de direito.”

O ministro Marco Aurélio Mello, em 2003, ficou vencido no julgamento. Ele concluiu que se o Tribunal confirmasse a condenação por racismo estaria contrariando a liberdade individual de manifestação de pensamento.

“Estaria configurado o crime de racismo se o paciente, em vez de publicar um livro no qual expostas suas ideias acerca da relação entre os judeus e os alemães na Segunda Guerra Mundial, como na espécie, distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre com dizeres do tipo ‘morte aos judeus’, ‘vamos expulsar estes judeus do país’, ‘peguem as armas e vamos exterminá-los’. Mas nada disso aconteceu no caso em julgamento. O paciente restringiu-se a escrever e a difundir a versão da história vista com os próprios olhos”, afirmou.

Sendo assim, liberdade de expressão, portanto, deriva e é indissociável do direito individual primordial: o fato de a pessoa ter a propriedade de seu corpo e de seus meios de produção adquiridos de forma honesta e voluntária, o que lhe dá o direito de fazer uso destes seus meios para expressar suas ideias. O que não está sendo aceito pelo nosso sistema judiciário.

Uma vez que, ninguém tem o direito de dizer o que quiser onde quiser. Por exemplo, uma pessoa jamais teve e — torçamos! — jamais terá o “direito” de escrever o que quiser em um jornal. Pessoas só podem escrever coisas em jornais se os proprietários destes jornais assim permitiram.  Qualquer outro arranjo configura agressão à propriedade privada.

Ou seja, tão logo o estado, por meio do poder judiciário se intromete, a situação muda inteiramente. Se eles começarem a determinar o que jornais podem ou não publicar, ou o que serviços de streaming podem ou não veicular, haverá uma restrição dos direitos destes veículos.

Exemplo desta situação foi o que ocorreu em 2019 quando a deputada federal Maria do Rosário (PT) invocou o poder judiciário para calar o comediante Danilo Gentili, que rasgou a notificação oficial de censura, enfiou em sua roupa de baixo e reenviou à remetente. Gentili acabou condenado a seis meses de prisão por insultar um político à distância!

Por isso, a opinião ofensiva não deve ser banida porque não podemos confiar em que um burocrata ou um juiz decida o que deve ser permitido. Em geral, o defensor da censura julga que serão calados apenas os odiosos, mas, uma vez que o estado tenha a prerrogativa de banir opiniões, a sociedade inteira está em risco.

Ademais, a única pessoa responsável por diferenciar fato de fake é o próprio indivíduo. Somente o indivíduo é responsável por seu consumo de informações. Se uma determinada pessoa opta por acreditar em coisas erradas, ou se ela não quer checar a veracidade das coisas que lê e ouve, ela própria sofrerá as consequências. Isso se chama responsabilidade individual.

Ao constantemente tentar censurar e banir tudo de que não gosta, o poder judicial, na prática, está dizendo que todos os indivíduos são incapazes de tomar a decisão correta por conta própria. E isso, além de arrogante, é uma postura totalitária.